Pedi um café, nem muito cheio, nem muito vazio

Sentei-me junto à única mesa livre naquela manhã de correria habitual em Lisboa. Pedi um café, nem muito cheio, nem muito vazio. Um café parecido à minha vida, nem muito cheia, nem muito vazia. Olhei sem pressa à minha volta e tudo pareceu normal. A banalidade já fazia parte da rotina, até porque a rotina é sempre banal. Tudo o que realmente nos marca nunca é rotineiro. E eu há muito que não sentia que algo me marcasse.

Quando o café já estava meio vazio, quando o jornal já me tinha passado pelos olhos duas vezes, então eu achei que fosse hora de ir embora. Até que apareceste. Tão jovial como o sol quando nasce. E com a tua pressa de cidade ficaste ali a travar olhares comigo. A banalidade tinha sido interrompida por ti. A rotina tinha sido esquecida naquele dia. O autocarro partiu com um lugar a mais e o cigarro das 9 horas da manhã ficou no maço bem quieto.

E a conversa começou sem que nenhum de nós se esforçasse demasiado. E pedi-te que me falasses de ti. Fala-me de ti. Fala-me dessa pessoa que não conheço mas que anseio por saber mais. Fala-me da pessoa por baixo das roupas que trazes vestidas, falam-me da pessoa que se desdobra em sorrisos para um desconhecido como eu. Não te pedi que me falasses do teu canudo, do teu horário de trabalho, nem sequer da promoção da semana passada. Fala-me de ti. Fala-me das tuas inspirações. Dos segredos que tens contigo própria. Fala-me dos teus medos, aqueles pequeninos. Eu espreito por baixo da cama antes de adormecer. Tenho medo que alguém se esconda por lá. É o meu medo pequenino. Fala-me também dos teus medos grandes. Aqueles monstruosos, aqueles que te tiram o sono e que te cansam a alma. Fala-me das tuas loucuras. Daquelas que fizeste quando eras adolescente. Decerto que as fizeste. Nem imaginas quantas cometi. Fala-me dos teus sonhos, por mais irrealistas que possas pensar que eles são. Aqueles que te movem, que não te deixam desistir. Fala-me dos teus amigos, deles todos, dos melhores, dos para sempre. Fala-me da tua família, é grande? Tens irmãos? São tão bonitos como tu? Fala-me em várias línguas. Fala-me das culturas que conheceste, dos cheiros que distinguiste. Fala-me do teu prato preferido e daquele que te faz torcer o nariz. Fala-me da tua música, aquela só tua, aquela que te faz dançar no meio do metro. Fala-me se és feliz. Não te pedi que me falasses da tua rotina, até porque a rotina é sempre banal. Fala-me de ti. Do que és. Do que queres ser. Do que levas no coração. Fala-me do amor, do ódio, da festa da noite passada e do penteado que tens hoje. Fala-me enquanto o café está meio vazio. Não sejas nem muito cheia, nem muito vazia. Fala-me de ti. Sem constrangimentos, sem esforço. E agora é a minha vez.

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