Era terça-feira

Era terça-feira. Uma terça-feira como outra qualquer. Despedi-me de ti como sempre o fiz. Com um beijo curto e um boa noite espontâneo. Ironicamente repetiste as mesmas palavras que eu. Em uníssono. Como se tivéssemos treinado para não falhar. Depois saí. Lavei os dentes, cobri-me com o lençol e adormeci. Adormeci com todos os sonhos do mundo. Tal como uma criança deve adormecer. Adormeci convencido que o dia seguinte iria ser tal e qual como tinha sido até agora: feliz. Mas não foi.

Acordei com o coração revirado. O grito da mãe deixou-me sem saber onde estava. Com uma rapidez que já não sei descrever segui o pânico até onde ele me levou. Lembro-me que senti o chão frio. Ouvi chorar. Ouvi chorar repetidamente. E percebi que tinha perdido uma parte de mim. Provavelmente, a melhor. Não foi instantâneo. O tempo caminhou. Os dias seguintes foram dotados de acalmia. Parecia estar anestesiado sem que me lembre de ter tomado qualquer veneno. Lembro-me de continuar, devagar, repetindo as rotinas como se tudo à minha volta permanecesse intacto. Mas não estava.

Fiquei preso a uma apatia que terminou no momento em que o meu cérebro processou a minha nova realidade. E aí, tudo caiu. O chão que me permitia estar equilibrado, cedeu. Os meus joelhos perderam a força e chorei compulsivamente. Se gritei, ninguém me ouviu. Se fugi, ninguém me encontrou. Senti-me, pela primeira vez na vida, completamente sozinho. Sabes quão profunda é essa dor? Eu tinha perdido o meu melhor amigo. A pessoa que me ensinou tudo o que sabia até à data. O Homem que me educou sem paradigmas. Perdi o meu modelo. O meu maior exemplo. Perdi-te, Pai. Como pudeste ir quando tinhas tanto pelo que ficar?

Não consigo explicar quanto orgulho tinha em ti. Adotei os teus gostos, as tuas paixões. Como se fossem meus. Definiste quem fui, sou e quem procuro ser. E hoje, quando erro, sinto que te falhei. Hoje, cada vez que quebro os teus valores, sinto que te desiludi. E peço-te que me perdoes por isso. Não sei se o consegues, mas sei que tentarias. Perdoa-me, Pai.

Confesso-te que é difícil ser adulto. Não o aprendi de forma linear. Fizeste-me falta neste processo. O mundo roda todos os dias e eu sinto que sou por diversas vezes incapaz de o acompanhar. Exigem de mim o que não sou. Sou até condenado quando escolho o que me torna efetivamente completo. Está tudo ao contrário. Não compreendo. A sociedade deve moldar-me? Devo permitir que o faça? Ou devo manter a fidelidade a mim próprio? Quão mais fácil seria se me explicasses tudo isto. Sempre foste de ideias claras.

Meu Pai, de aqui em diante comprometo-me a duas coisas. A ser feliz e a fazer os outros felizes. Mas desta vez sem ilusões. Sem obrigatoriedades. Não se ama por obrigação. Comprometo-me a cuidar da mãe, das manas e do teu neto. Sei que o farias melhor que eu, mas vou dar tudo de mim. Ao meu filho, vou contar-lhe as tuas histórias, falar-lhe dos teus carros, das casas pelas quais te apaixonaste. Vou falar-lhe das tuas vitórias e das derrotas que te tornaram num herói. Ele vai ter orgulho em ti. Acredita que vai. Porque o meu coração tornou-se demasiado pequeno para o guardar apenas comigo.

Amo-te Pai.

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A ti meu amor,
Inês

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